O desaparecimento do público. Pensar as artes performativas | José Maria Vieira Mendes
Seminário
José Maria Vieira Mendes / Teatro Praga
"O desaparecimento do público. Pensar as artes performativas" | Questões Práticas 06
19 Set | Sáb | 14:15-17:30
20 Set | Dom | 10:15-12:30 + 14:15-17:30
Centro de Memória
Há quem afirme que, no campo das artes performativas, o público tomou mais recentemente um lugar central, tanto para quem faz os espetáculos como para quem os descreve e critica. Este interesse pelo público tem uma história que assenta em vícios e que importa reconhecer para não fortalecer discursos e políticas que empurrem as artes para uma necessidade de justificação social e utilitária. Neste seminário iremos discutir em conjunto diferentes ideias de público (e arte), identificar as suas histórias e olhar para o seu reflexo tanto nas artes performativas contemporâneas como em outras disciplinas. O objetivo será o de procurar um lugar de maior liberdade e autonomia para “o público”.
— José Maria Vieira Mendes (Teatro Praga)
Reflexão do professor da FLUL José Maria Vieira Mendes no âmbito do seminário "O desaparecimento do público. Pensar as artes performativas", realizado nos dias 19 e 20 de Setembro de 2020, no âmbito do 16.º Circular Festival de Artes Performativas.
Seminário no âmbito do 16.º Circular Festival de Artes Performativas e do projecto Questões Práticas, integrado no Programa Educativo da Circular Associação Cultural, coordenado por Joclécio Azevedo
Público-alvo: Estudantes do ensino superior ou profissional, nomeadamente de áreas ligadas à dramaturgia, coreografia e outras disciplinas artísticas, programadores e gestores culturais, professores, público em geral.
Há quem afirme que, no campo das artes performativas, o público tomou mais recentemente um lugar central, tanto para quem faz os espetáculos como para quem os descreve e critica. Este interesse pelo público tem uma história que assenta em vícios e que importa reconhecer para não fortalecer discursos e políticas que empurrem as artes para uma necessidade de justificação social e utilitária. Neste seminário discutimos em conjunto diferentes ideias de público (e arte), identificámos as suas histórias e olhámos para o seu reflexo tanto nas artes performativas contemporâneas como em outras disciplinas com o objetivo de procurar um lugar de maior liberdade e autonomia para “o público”.
Com a ajuda de um ensaio de Leo Steinberg, “The Pight of the Public”, clarificámos que ser público equivale ao desempenho de um papel com um guião que conhecemos e que contempla um conjunto de regras comportamentais. Afinámos também a expressão “experiência” na sua aplicação à relação entre público e obra de arte (“experiência estética”) e caracterizámo-la como a experiência de um encontro marcado com o que se sabe que é (é “arte”), o que significa que só sabendo que estamos diante da obra de arte podemos representar o papel público. Este ponto de chegada permite descansar no que diz respeito à necessidade de definir o que seja público. A diferença entre a experiência de público (a experiência estética) e uma outra experiência é o facto de esta acontecer dentro do contexto em que contactamos com o que sabemos ser uma obra de arte, o que faz com que nunca nos enganemos. Sabemos sempre quando estamos a ser público, da mesma forma que sabemos quando estamos diante de uma obra de arte. Não quer isto dizer que não nos possamos enganar, que não possamos confundir um extintor com uma instalação, mas a experiência errada só é possível porque existe a experiência correta: ser público é relacionar-se com uma obra de arte.
Esta definição tautológica1 de público e de arte (“não há arte sem um olhar que a veja como arte”, escreve Rancière em O destino das imagens) pode descansar-nos sobre a necessidade de identificarmos ou distinguirmos a experiência público de outra experiência, tal como nos faz desinteressar da discussão sobre o que é ou não arte. Como escreve Stanley Cavell, equiparando arte ao facto (metafísico) da vida, “não há nada para se conhecer na coisa para além da nossa própria experiência” dela. that apart from one’s experience of it there is nothing to be known about it (Cavell (2002): 218)
Estabelecidos estes princípios dedicámo-nos nas horas seguintes a olhar para o que escrevem teatrólogos, críticos de arte e artistas contemporâneos sobre o “público” e debruçámo-nos mais em particular sobre o fenómeno da “arte participativa” (Claire Bishop). Observámos alguns exemplos (mais e menos felizes) e, com um trabalho de aprofundamento das ideias políticas por trás destes eventos e discutindo a relação entre arte e política de acordo com uma história assente no conceito de autonomia, que supostamente remonta a Kant e desemboca em Benjamin, Guy Debord ou Adorno, traçámos linhas críticas que permitem afinar os olhares críticos sobre a dança entre estética e ética que parece conduzir uma certa história da relação das artes com o mundo.
Estes argumentos permitiram-nos também refletir sobre as propostas de artes performativas em tempos de confinamento que recorreram ao on-line e a plataformas de comunicação e sobre o modo como foram recebidas e entendidas. E se antes havíamos desmontado o pressuposto de que a “experiência estética” por si só oferece garantias de um certo tipo de efeito também o fizemos com o pressuposto de que a presença ao vivo do público e a possibilidade de interação do público com a obra garante uma certa qualidade à experiência. Na parte final do seminário procurámos uma solução ou um ponto de vista que de alguma forma permitisse conciliar a ideia de autonomia da obra e do público com a sua presença e ligação ao mundo. Identificámos um modelo, que conquistou um papel cada vez mais importante na arte após os anos 1960, e que é hoje uma “ortodoxia virtual” (Siraganian), sustentando as afirmações de que o papel do público é cada vez mais fundamental para a descrição da experiência estética. Olhámos para esse modelo à luz de algumas das “conquistas” da história de arte mais recente. Quando Duchamp trabalha com ready-mades, quando Marcel Brodthaers cria o “Departamento das águias” no seu “Museu de Arte Moderna” ou quando Warhol aspira a galeria e assina posteriormente o saco do aspirador que coloca sobre um pedestal, estes artistas, que nunca abdicam do diálogo com o “público”, estão a abrir espaço para uma maior liberdade, na medida em que procuram desonerar a obra de arte de fardos que potenciavam constrangimentos para a sua vida sensível. O fardo da representação (arte como imitação), o fardo da diferença (arte como especial e única), o fardo do sentido (arte como metáfora ou narrativa), o fardo da luz (arte como educação), o fardo da utilidade (arte como política), etc.
Para desonerar pois o público e a obra de arte recorremos ao conceito de “autonomia de significado” de Lisa Siraganian que colocámos em diálogo com o “espectador emancipado” de Jacques Rancière2. Os resultados que se pretendem obter com esta proposta é a desobrigação do público de “validar” uma obra, de fazer parte duma obra e da obra, por sua vez, não depender da “aprovação” do púbico, do chamado “reconhecimento público”. O gesto crítico deixa assim de se inscrever numa dualidade moralista entre “reconhecimento público”. O gesto crítico deixa assim de se inscrever numa dualidade moralista entre quem gosta e quem não gosta, quem autoriza e quem desautoriza, e passa a ser capaz de conciliar a ideia de autonomia com a ideia de relevância do espectador.
Lisboa, 28 de setembro de 2020 JMVM
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1 Joseph Kosuth escreve no final dos anos 60 do século XX: “Uma obra de arte é uma tautologia, na medida em que é a apresentação da intenção do artista, ou seja, ele está a dizer que aquela obra de arte em particular é arte, o que quer dizer que é uma definição de arte.” (Kosuth, 2010: 857) Desta ideia de tautologia não se pode ignorar a influência de Heidegger e de A origem da obra de arte (1950).
2 Rancière (2011): 99